Um lugar para os que são, os que ainda não são e os que não vão chegar a ser, conversarem e trocarem experiências.

Thursday, October 27, 2005

Uma história de "as" e "os"


Neste mundo pretensamente heterossexual em que a gente vive, não é sempre que podemos conversar à vontade num bar lotado sobre “certos assuntos”. Então, muitas vezes temos que modificar os artigos, transformando os “os” em “as”, os “eles” em “elas”, e por aí vai. Mas o que parece ser perfeito muitas vezes causas sérios problemas de compreensão, principalmente quando a pessoa com a qual você conversa tem um QI de Carla Pérez.
Uma cidade pequena. Lanchonete da moda. Oito e meia da noite. No telão, rola um DVD da banda Calypso, ao vivo, ou seja, “o” inferno. Dou uma mordida no sanduíche e falo pra o meu amigo:
- Pois é. Tem o meu caso...
- Você está de caso?
- Não, menino! O lance da minha “namorada”... – olho pra ele com um olhar de Joey dos Friends.
- É o quê? Você está de namorada? Rapaz, isso não da certo não! Eu já te disse! Você está se enganando! Você não gosta de mulher!
A menina da mesa ao lado quase se engasga com o milkshake.
- Fale baixo, sem noção!
- E eu estou falando alto? – berra ele.
- Não! Mamãe lá em casa perguntou quem não gostava de mulher!
- Você quer o quê? Você já tem mais de um ano de namoro e agora vem me dizer que está de namorada...Namorada! Ah! Entendi!
- Graças a Deus!
A conversa rola a noite toda daquele jeito. Eu nos “as” e ele insistindo nos “os”:
- Mas pense num corpo! Cada bração! Forte!
- Cuidado...
- Eitah...eh..cada bração “dela”! “Ela” é linda, cara! Forte! “Altona”!
O problema é que nem sempre a adaptação funciona.
- Tem certeza que você não pegou um travesti? – eu tento disfarçar.
- Era não, viu? Mas porquê? Ah...eitah, foi mal. – se desculpa ele.
De repente, passa por nós “uma menina” muito “linda” e se senta na mesa ao lado.
- Disfarça.
- O que foi?
- Atrás de nós.
Ele se vira com a sutileza de um hipopótamo numa rua movimentada, ao meio-dia.
- O que foi?
- Atrás da gente, ô discrição!
- Vi não, o que era?
- “Uma menina”, “gata”.
- Votz. Vi não.
- Atrás da gente, de regata branca!
- Regata? Uma menina de regata? De noite? Aqui?
- Puta que pariu! Atrás de nós!
- Vi não!
- De cavanhaque!- agora quem berra sou eu. Todo a lanchonete pára.
- Uma menina de cavanhaque? Ah...entendi. Mas precisava gritar? Todo mundo ficou olhando pra gente...
Eu mereço. Alguém sabe quanto custa uma passagem pra Londres? Só de ida, por favor!

Friday, October 14, 2005

Faça uma pose!


"Ah, se eles tivessem compreendido o que ela queria dizer... "
Fala de Cassandra, personagem de Tróia

- De quem é essa foto?
Ela se chama Adriana, estagia com você e a sua pouca inteligência é compensada por uma sagacidade invejável, o que dá a moça uma inacreditável aura de Cassandra do mundo moderno. Ela descobre, mas não sabe o quê.
- Quem foi que mandou você mexer na minha carteira, sua racha!
Ops. Escapuliu.
- Como é, menino? Que história de Suracha? Eu sou Adriana, doido, esqueceu, foi?- ela fala isso rindo daquele jeito que só ela sabe, balançando a cabeça pro lados e roncando como uma porca.
Se eu pudesse voltar no tempo, teria contido esse meu ímpeto libertário e não teria guardado a foto do meu namorado na carteira. Tudo bem que eu pensei num primeiro momento que não tinha nada a ver, que todos os namorados guardam fotos dos seus respectivos nas carteiras, não é mesmo? Mas era o Brasil, ou pior, era Natal, então as coisas não são tão fáceis e/ou sinceras assim.
- Quem mandou você mexer na minha carteira?
- Ai, David, que grosso, tava só olhando.
- Sim, mas eu não deixei. Imagina se eu fosse um terrorista, hein? Hein? E se tivesse um fiozinho ligado a essa carteira que detonasse uma bomba? Você seria a culpada, Adriana! Você teria matado uma ruma de gente!
Juro por Deus que ela ensaiou um biquinho de choro.
- Mas...mas..nem barba você tem...Como pode ser um terrorista?
- Eu não to dizendo que eu sou, Adriana, to dizendo que poderia ser.
- Ai, Deus...
- O que foi?
- Semana passada o André daqui da sala tava deixando a barba crescer. Será que ele é um terrorista?
- Sei não, mexe na carteira dele.Se você ouvir uma explosão...
Eu pensei que, com o susto, ele tivesse aprendido a lição. Triste engano.
- David...
- Oi.
- De quem é a foto na sua carteira?
- Qual foto?
- A que eu vi. De um cara.
O meu gesso de hetero estava a um passo de derreter. A não ser que...
- Na carteira...? – finjo uma cara de triste e magoado.- Meu primo!
- E por que você guarda a foto de seu primo na carteira?
- Por que ele morreu, Dri.
Eu sei, eu sei. Um pouco cruel demais. Mas foi necessário! Ela pediu!
- Ai, David, desculpa... – ela saiu quase correndo da sala sem ter onde enfiar a cabeça.
No final deu tudo certo. Adriana nunca mais mexeu na minha carteira e ainda passou uma semana me bajulando. O ruim só foi aturar a enxurrada de e-mails de power point com correntes sobre a melhor forma de encarar a morte de pessoas queridas.
Dia desses, quando pensei que a moça tinha esquecido tudo, recebi uma ligação do meu amor:
- Amor...
- Fala.
- Me aconteceu uma coisa tão estranha hoje na rua. Pensei até que fosse uma pegadinha.
- Deram uma pegadinha em você? Quem foi? Quem foi? Eu mato!
- Não, lesado. Eu tava andando na rua quando esbarrei com uma loirinha alta.
- Quê que tem?
- Espera! A menina me olhou com uns olhos arregalados. Depois ficou apontando pra mim e gaguejando umas coisas esquisitas: “primo, morto, morte”, uma coisas assim, e saiu correndo , gritando com os braços pra cima. Estranho, né?
- Nem tanto.
- Sei lá, parece que ela tinha...
- Visto um fantasma?
- É! Exatamente.
Tudo bem. Talvez eu tenha exagerado.
Será mesmo?Essa semana eu tava entrando na sala quando, de repente:
- David... –era a Adriana.
- Fala.
- Você é casado?
- Eu não.
- E essa aliança de prata na mão esquerda?
Caralho! Esqueci de tirar a aliança!
- Veio no sucrilhos...
Adriana sorriu, balançou a cabeça e voltou aos seus afazeres. Era melhor não complicar.